A CARIDADE É O VÍNCULO PERFEITO
Postado 18/03/2024 08H58

A CARIDADE É O VÍNCULO PERFEITO
Sobre precaver-se de um “magistério paralelo”
Ronaldo José de Sousa
- A recente polêmica em torno da Declaração Fiducia Supplicans2 revela algumas coisas
- curiosas a respeito do catolicismo contemporâneo. Entre elas, a tendência de muita gente em
- se apegar a aspectos que nem são os mais centrais nos textos do Magistério, abstendo-se de
- uma leitura completa e atenta para compreender melhor o significado de suas propostas.3 Tal
- apego não deveria ser uma prática nem mesmo da imprensa secular, quanto mais de prelados,
- catequistas e influenciadores católicos, pois grande parte dos fiéis se baseia em seus
- ensinamentos para construir convicções.
- As discussões envolvendo as possíveis bênçãos a casais em situação irregular foram
- acirradas, mesmo tendo a Declaração se detido longamente na reafirmação da doutrina
- tradicional e na distinção entre as bênçãos litúrgicas e aquelas de cunho pastoral, que não
- exigem as mesmas disposições morais requeridas para a recepção dos sacramentos (cf. n. 4-
- 13). O esforço do Dicastério em tornar o texto equilibrado parece não ter sido suficiente para
- conter a oposição daqueles que consideram determinadas concessões um risco de confusão
- para a consciência dos cristãos.
- Existe um problema muito preocupante que o catolicismo atual enfrenta – pelo menos
- no Brasil - de que, a meu ver, a controvérsia suscitada pela Fiducia Supplicans é apenas mais
- um sintoma. Refiro-me a um clima geral que autoriza qualquer católico a se posicionar
- publicamente contra ou a favor de algo cujo encargo pastoral não lhe pertence. Algumas
- figuras religiosas – especialmente as midiáticas – assumiram essa pseudorresponsabilidade
- como uma verdadeira missão. Elas se acham no dever de “esclarecer” aos fiéis, mesmo que
- estes não pertençam ao seu rebanho e estejam sob a custódia do próprio Papa (como seria o
- caso em que, usando pretexto pastoral, se critica episódios ocorridos na Diocese de Roma).
- Quando, por exemplo, um presbítero de uma determinada Igreja Particular emite
- parecer doutrinário sobre algo acontecido em outra diocese, no intuito de catequizar
- adequadamente o povo, ele está aderindo a este espírito de réplica, do qual não consegue se
- subtrair. O fato do ocorrido ser inadequado ou heterodoxo em nada altera a inconveniência
- de quem se porta dessa maneira, pois o dever de intervir seria do ordinário local (cf. CDC, c.
- 386.391-392). Outrossim, se um missionário leigo, pelas mesmas razões, exige explicações de
- um padre (que certamente tem um superior, seja bispo ou provincial) sobre qualquer assunto
- de doutrina, ele invade um campo que não é de sua competência. Nesses e noutros casos, a
- publicação é um agravante, porque as mídias não são, em hipótese alguma, o foro adequado
- para solucionar eventuais erros de ortodoxia ou de comportamento.
- Grosso modo, essas intervenções não são apenas “opiniões”. Opinar poderia ser
- considerado legítimo, desde que isso fosse feito nas alçadas certas. Tratam-se de verdadeiras
- apropriações, para não dizer usurpações, porque o poder de influência de vários desses
- pregadores é capaz de criar uma espécie de “magistério paralelo”.4 Em alguns casos, falta
- sensatez no uso das palavras e, por causa disso, cria-se um clima bélico em essência. Não seria
- exagero identificar a infiltração no catolicismo brasileiro do princípio do livre exame, conforme
- já advertiu Dom Fernando Rifan: “Muitos se posicionam absurdamente como juízes do
- Magistério e até mesmo juízes no lugar do Magistério”.5 Curioso é o fato de que quem faz isso,
- geralmente é crítico ferrenho do protestantismo.
- É preciso ter muita cautela quando se fala “em nome da verdade”. Pois a verdade é
- uma Pessoa e é ela que deve nos possuir, não o contrário (cf. Jo 14, 6). Movimentos cismáticos
- não costumam invocar a mentira como seu baluarte. A prudência e o discernimento são ainda
- mais imperiosos quando se pretende interpelar o Magistério Vivo da Igreja. Justificar tais
- interpelações com artigos do Catecismo ou do Código de Direito Canônico é, no mínimo,
- temerário. Mesmo os dogmas carecem de uma “recepção histórica” inteligente, sendo
- necessários, para isso, tempo, paciência, diálogo e tolerância. Muitos foram os que já
- cometeram erros nessa matéria, especialmente quando quiseram exortar o Papa. Segundo
- Raniero Cantalamessa - com o qual concordo - até São Paulo incorreu nesse engano (Gl 2, 11-
- 14).6
- Não obstante o contexto atual exija uma nova visão a respeito da territorialidade
- eclesial, há que se precaver contra esse “magistério paralelo”, sendo esta precaução uma
- tarefa das autoridades constituídas, dos influenciadores católicos e – extensivamente – de
- todos os cristãos. Estes não devem se deixar arrastar à deriva por todo “vento de doutrina”,
- nem se permitir ludibriar pela astúcia dos homens e incorrer no erro (cf. Ef 4, 14). Não é
- possível julgar as intenções de quem vem a público munido de argumentos em suposta defesa
- da fé, confrontando os pastores de ofício e, na prática, invadindo circunscrições eclesiásticas.
- Porém, é lícito e cauto questioná-las, sabedores que somos de que pregadores midiáticos
- necessitam de presença frequente em seus canais, com temas atraentes e, neste particular,
- nada melhor do que polêmicas e fatos arrebatadores.
- Quando vejo querelas em torno do certo e do errado, às vezes com lados opostos se
- desrespeitando entre si ao defender aquilo que consideram mais virtuoso, recordo-me de que
- a caridade é o único vínculo perfeito que une tanto as virtudes quanto as pessoas. E sinto falta
- dela! Sinto falta do dom por excelência que nos reveste de sentimentos de compaixão,
- benevolência, humildade e paciência. E que nos capacita para o perdão e o suporte mútuo (cf.
- Cl 3, 12b-14). Mas tenho esperança de que o amor ocupe os nossos corações, pois somos
- “eleitos de Deus” (cf. Cl 3, 12a). Tenho esperança de que nos apeguemos a ele a fim de superar
- a dicotomia que afeta nossas relações, tornando-nos verdadeiramente um só corpo na
- diversidade de opiniões (cf. 1 Cor 12, 12) e já não sintamos mais saudade daquilo que nos une.
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